domingo, 7 de março de 2021

Sociedade literária e a torta de casca de batata

 

ASSUNTO

Ajustamento criativo, autossuporte, pertencimento, fronteira, contato, identificação, gestalt-terapia, perdas, luto, relações sociais, familiares e afetivas.


SINOPSE

Juliet Ashton (Lily James) é uma escritora na Londres de 1946 que decide visitar Guernsey, uma das Ilhas do Canal invadidas pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, depois que ela recebe uma carta de um fazendeiro contando sobre como um clube do livro local foi fundado durante a guerra. Lá ela constrói profundos relacionamentos com os moradores da ilha e decide escrever um livro sobre as experiências deles na guerra.

TRAILER



O OLHAR DA PSICOLOGIA

Para lá de curioso, o título nos remete ao processo de adaptação às circunstâncias adversas. No filme, um grupo de amigos é flagrado nas ruas após o toque de recolher imposto, durante a ocupação nazista da Ilha de Guernsey. Para evitar consequências perigosas, surge a ideia de informar que saíam de um clube literário, rapidamente nomeando como uma SOCIEDADE LITERÁRIA, título complementado com o que veio em mente, naquele momento ameaçador, e, de acordo com o que era permitido. A alternativa criativa, resposta urgente ao momento ameaçador, torna oficial os encontros periódicos daquele grupo, fortalecendo o vínculo dos envolvidos durante o período da ocupação e no pós-guerra. A literatura se torna ponte, conectando os personagens, seja consigo mesmo, com os outros, e, até mesmo com o público. Longe daquela ilha, acompanhamos a jovem escritora ser capturada pelas cartas de um dos membros do grupo. Logo, é possível perceber que seu momento de aparente sucesso profissional e pessoal, ela camufla o vazio deixado pela guerra. Em busca de inspiração para seu artigo, Juliet é atraída pelas cartas e se lança na aventura de conhecer de perto o clube de literatura. Daí em diante, o público acompanha diferentes perspectivas do pós-guerra, que sendo descortinadas, emocionam, encantam e surpreendem.  São abordados diferentes conflitos sociais e pessoais, com elegância, delicadeza e competência, fazendo com que o espectador não consiga desgrudar os olhos da tela. Ajustamento criativo, autossuporte, pertencimento, contato, identificação, dentre outros, são conceitos abordados no filme, que alterna passagens do passado e do presente, equilibrando momentos de mistério, romance, comédia e drama. Recomendamos continuar a leitura, somente após assistir ao filme.

Ao longo da fita, vamos compreendendo que após o confisco dos meios de sobrevivência dos moradores, uma das sugestões e permissões para os moradores eram as benditas batatas. Desde então, para continuarem atendendo a necessidade urgente de romper o isolamento e se nutrirem através do contato com o outro, o grupo registra e perpetua encontros periódicos de leitura, que são abastecidos com a tal torta. De fato, a torta não parecia ser saborosa, o que era compensado com diferentes gins produzidos por um dos membros. Impossível não pensar, de pronto, em pelo menos duas vertentes. A primeira nos remete ao momento de pandemia e isolamento que vivemos, gerando reações distintas, algumas irresponsáveis, outras bastante rígidas. Tal qual o período das grandes guerras, a sociedade precisa lidar com a imposição do isolamento, o que provoca distintas reações, muitas vezes afetando a saúde mental de pessoas. Não há como não refletir sobre o quanto o contato é necessário para a saúde do ser humano, entretanto, como enfrentar as impossibilidades e criar alternativas capazes de não trazer consequências desastrosas? A segunda vertente nos remete ao “ajustamento criativo”, conceito caro à Abordagem Gestáltica, usado para “descrever a natureza do contato que o indivíduo mantém na fronteira do campo organismo/ambiente, visando à sua autorregulação sob condições diversas”, conforme descrito no livro “Dicionário de Gestalt-terapia - GETSALTÊS’. O ajustamento criativo daquele grupo, diante das adversidades, é o ponto de partida para o desenvolvimento da trama, que tem como pano de fundo os horrores da guerra e suas consequências. Obviamente, é possível identificar diferentes ajustes criativos nos personagens diante dos conflitos sociais e pessoais gerados pela guerra. Vale destacar a abordagem sutil do filme em relação ao conceito de fronteira de contato (gestalt-terapia). Por exemplo, diante das diferenças, reações drásticas, críticas, desconsiderando outras possibilidades, senão a própria. Alguns personagens exibem claras dificuldades em compreender outra perspectiva, seja a dona da casa de hospedagem, que se escondia por trás da religião para criticar, ou, outros personagens que não acreditavam na possibilidade de um adversário da guerra ser também uma boa pessoa. A trama escolhe um olhar suave e terno, focando mais nas alternativas de reconstrução do que nas destruições e perdas deixadas pela guerra. A curiosidade da escritora a faz mergulhar numa pesquisa para descortinar os mistérios que rodeavam aquelas pessoas. Ao mesmo tempo, ela vai constituindo novos laços, que vão revelando uma sensação de pertencimento, bem diferente do que experimentara depois do pós-guerra. Tal perspectiva motiva reflexões a respeito recomendações e “receitas de sucesso”, generalizadas, moldadas e divulgadas em diferentes mídias. A ditadura do ideal de felicidade desconsidera a singularidade do ser, muitas vezes afetando a saúde mental daqueles que tentam seguir um padrão externo. Quando a protagonista inicia um processo de investigação e contato com aquelas pessoas, ela também tem a chance de elaborar suas questões. É inevitável perceber a diferença entre o contato que faz com aquelas pessoas, que despertam sua totalidade de ser, daqueles que estava vivendo antes. Particularmente, fica evidente em sua reação de insatisfação diante do glamour e luxo experimentado em Londres. As pessoas, a paisagem pitoresca, a natureza, a simplicidade e, principalmente, a espontaneidade, a tocam, afetando e transformam a sua forma de ser. Curioso notar a ênfase dos olhares, movimentos corporais, gestos e expressões, na construção do romance entre Juliet e Adams. Fica latente a energia presente entre eles, desde o primeiro encontro. A profissional das letras vivencia experiências através dos sentidos. Ela se disponibiliza a investigar as peças que faltavam ao quebra-cabeça daquele grupo, tendo empatia, dedicação e cuidado. No entanto, foi preciso se afastar, para que se dar conta da própria necessidade. Depois de  alguns dias de apatia e recolhimento, ela descobre que não é possível retornar para a “zona de conforto”, que não encaixa mais naquele modelo de vida. Tal qual um processo terapêutico, ao enfrentar a sua dor, separando o que era seu do que era dos outros, ela pode romper com o que não era dela e integrar as peças de seu próprio quebra-cabeça. Só então, inteira, pode buscar o amor. Lindo filme, super recomendamos!

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