Atendendo em consultório particular em Copacabana e na Ilha do Governador, reflito sobre a influência dos filmes em minha trajetória, que foi atravessada pelo cinema em diversas fases. Ferramenta de auxílio para a compreensão de diversos conceitos, os filmes não só informam, mas são capazes de nos tocar, favorecendo assim, novas formas de lidar com nossas questões e conflitos.
Compartilho, então, alguns desses filmes.
Juliet Ashton (Lily
James) é uma escritora na Londres de 1946 que decide visitar Guernsey, uma das
Ilhas do Canal invadidas pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, depois
que ela recebe uma carta de um fazendeiro contando sobre como um clube do livro
local foi fundado durante a guerra. Lá ela constrói profundos relacionamentos
com os moradores da ilha e decide escrever um livro sobre as experiências deles
na guerra.
TRAILER
O OLHAR DA PSICOLOGIA
Para lá de curioso, o título
nos remete ao processo de adaptação às circunstâncias adversas. No filme, um
grupo de amigos é flagrado nas ruas após o toque de recolher imposto, durante a
ocupação nazista da Ilha de Guernsey. Para evitar consequências perigosas,
surge a ideia de informar que saíam de um clube literário, rapidamente nomeando
como uma SOCIEDADE LITERÁRIA, título complementado com o que veio em mente,
naquele momento ameaçador, e, de acordo com o que era permitido. A alternativa
criativa, resposta urgente ao momento ameaçador, torna oficial os encontros
periódicos daquele grupo, fortalecendo o vínculo dos envolvidos durante o
período da ocupação e no pós-guerra. A literatura se torna ponte, conectando os
personagens, seja consigo mesmo, com os outros, e, até mesmo com o público.
Longe daquela ilha, acompanhamos a jovem escritora ser capturada pelas cartas
de um dos membros do grupo. Logo, é possível perceber que seu momento de
aparente sucesso profissional e pessoal, ela camufla o vazio deixado pela
guerra. Em busca de inspiração para seu artigo, Juliet é atraída pelas cartas e
se lança na aventura de conhecer de perto o clube de literatura. Daí em diante,
o público acompanha diferentes perspectivas do pós-guerra, que sendo
descortinadas, emocionam, encantam e surpreendem. São abordados diferentes conflitos sociais e
pessoais, com elegância, delicadeza e competência, fazendo com que o espectador
não consiga desgrudar os olhos da tela. Ajustamento criativo, autossuporte,
pertencimento, contato, identificação, dentre outros, são conceitos abordados
no filme, que alterna passagens do passado e do presente, equilibrando momentos
de mistério, romance, comédia e drama. Recomendamos continuar a leitura,
somente após assistir ao filme.
Ao longo da fita, vamos
compreendendo que após o confisco dos meios de sobrevivência dos moradores, uma
das sugestões e permissões para os moradores eram as benditas batatas. Desde
então, para continuarem atendendo a necessidade urgente de romper o isolamento
e se nutrirem através do contato com o outro, o grupo registra e perpetua
encontros periódicos de leitura, que são abastecidos com a tal torta. De fato,
a torta não parecia ser saborosa, o que era compensado com diferentes gins produzidos
por um dos membros. Impossível não pensar, de pronto, em pelo menos duas
vertentes. A primeira nos remete ao momento de pandemia e isolamento que
vivemos, gerando reações distintas, algumas irresponsáveis, outras bastante
rígidas. Tal qual o período das grandes guerras, a sociedade precisa lidar com a
imposição do isolamento, o que provoca distintas reações, muitas vezes afetando
a saúde mental de pessoas. Não há como não refletir sobre o quanto o contato é
necessário para a saúde do ser humano, entretanto, como enfrentar as
impossibilidades e criar alternativas capazes de não trazer consequências desastrosas?
A segunda vertente nos remete ao “ajustamento criativo”, conceito caro à
Abordagem Gestáltica, usado para “descrever a natureza do contato que o
indivíduo mantém na fronteira do campo organismo/ambiente, visando à sua
autorregulação sob condições diversas”, conforme descrito no livro “Dicionário
de Gestalt-terapia - GETSALTÊS’. O ajustamento criativo daquele grupo, diante
das adversidades, é o ponto de partida para o desenvolvimento da trama, que tem
como pano de fundo os horrores da guerra e suas consequências. Obviamente, é
possível identificar diferentes ajustes criativos nos personagens diante dos
conflitos sociais e pessoais gerados pela guerra. Vale destacar a abordagem
sutil do filme em relação ao conceito de fronteira de contato (gestalt-terapia).
Por exemplo, diante das diferenças, reações drásticas, críticas,
desconsiderando outras possibilidades, senão a própria. Alguns personagens
exibem claras dificuldades em compreender outra perspectiva, seja a dona da
casa de hospedagem, que se escondia por trás da religião para criticar, ou, outros
personagens que não acreditavam na possibilidade de um adversário da guerra ser
também uma boa pessoa. A trama escolhe um olhar suave e terno, focando mais nas
alternativas de reconstrução do que nas destruições e perdas deixadas pela
guerra. A curiosidade da escritora a faz mergulhar numa pesquisa para
descortinar os mistérios que rodeavam aquelas pessoas. Ao mesmo tempo, ela vai
constituindo novos laços, que vão revelando uma sensação de pertencimento, bem diferente
do que experimentara depois do pós-guerra. Tal perspectiva motiva reflexões a
respeito recomendações e “receitas de sucesso”, generalizadas, moldadas e
divulgadas em diferentes mídias. A ditadura do ideal de felicidade desconsidera
a singularidade do ser, muitas vezes afetando a saúde mental daqueles que
tentam seguir um padrão externo. Quando a protagonista inicia um processo de
investigação e contato com aquelas pessoas, ela também tem a chance de elaborar
suas questões. É inevitável perceber a diferença entre o contato que faz com
aquelas pessoas, que despertam sua totalidade de ser, daqueles que estava
vivendo antes. Particularmente, fica evidente em sua reação de insatisfação diante
do glamour e luxo experimentado em Londres. As pessoas, a paisagem pitoresca, a
natureza, a simplicidade e, principalmente, a espontaneidade, a tocam, afetando
e transformam a sua forma de ser. Curioso notar a ênfase dos olhares,
movimentos corporais, gestos e expressões, na construção do romance entre Juliet e Adams. Fica latente a energia
presente entre eles, desde o primeiro encontro. A profissional das letras
vivencia experiências através dos sentidos. Ela se disponibiliza a investigar
as peças que faltavam ao quebra-cabeça daquele grupo, tendo empatia, dedicação
e cuidado. No entanto, foi preciso se afastar, para que se dar conta da própria
necessidade. Depois de alguns dias de
apatia e recolhimento, ela descobre que não é possível retornar para a “zona de
conforto”, que não encaixa mais naquele modelo de vida. Tal qual um processo
terapêutico, ao enfrentar a sua dor, separando o que era seu do que era dos
outros, ela pode romper com o que não era dela e integrar as peças de seu
próprio quebra-cabeça. Só então, inteira, pode buscar o amor. Lindo filme, super
recomendamos!
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