domingo, 28 de fevereiro de 2016

Chocolate

ASSUNTO
Mitos familiares, herança transgeracional, segredo, questões de gênero, relação familiar, terapêutica e social, preconceito, amizade e psicodiagnóstico.

SINOPSE
Em 1959, Vianne (Juliette Binoche) se muda com a filha para uma pequena cidade francesa e abre uma loja de bombons e chocolates com guloseimas de dar água na boca. Mas ela enfrenta oposição: é mãe solteira, trabalha aos domingos e prepara doces que fazem qualquer um ceder à tentação da gula. Alguns moradores planejam expulsar Vianne da cidade, temendo que ela perturbe a moral do lugar. Tem início um confronto entre os conservadores e os que desejam o sabor recém-descoberto.

TRAILER

O OLHAR DA PSICOLOGIA

Quase 6 anos depois de ter assistido, tive a oportunidade de rever CHOCOLATE, filme de 2000 repleto de assuntos, um prato cheio para discussão. Podemos começar pelo uso do chocolate como “remédio para alma”, servindo para libertar os desejos de quem o consome. Ainda que em menor proporção, o chocolate era indicado pelos povos antigos como afrodisíaco, por despertar a sensação de prazer. Vianne herdou dos seus antepassados as receitas mágicas de chocolate. Ao chegar à Cidade, ela abre uma loja para encantar os consumidores. A cada cliente que chega, ela aguça sua percepção para o que pode ser revelado, encontrando a indicação necessária para cada um. Mas, ela não é a única a seguir tradições, o conde também é guardião de tradição, só que de forma opressora, influenciado por outras normas (religiosas, sociais e acadêmicas). Aqui temos o encontro das diferentes perspectivas, o lugar da tensão, do conflito, espaço onde a trama se desenvolve. Enquanto a dona da doceria representa movimento, o conde é a personificação da tranquilidade, da rotina, da suposta segurança. As mudanças não são bem vindas. Ele controla uma sociedade fechada em si mesma, com pessoas escravizadas pela norma ditadas pela tradição familiar do nobre. Os valores estagnados são ameaçados pela transgressora, que é mãe solteira. Logo, é possível perceber as cores alegres das estrangeiras, o que destoa do cinzento e aparentemente pacato vilarejo. Desde então, já é possível refletir sobre a dificuldade que há em qualquer mudança, seja em sistemas familiares ou neuroses pessoais, que insistem estagnar em nome de uma suposta segurança. O novo pode ser percebido como ameaça. Não se trata de olhar a tradição como algo negativo, ao contrário, tradição pode ser o suporte necessário para nos adaptarmos às mudanças, desde que estejamos abertos para atualizações. A tradição do Conde era controladora, opressora, fechada, aparentemente tranquila e segura. Os existencialistas já sinalizaram a respeito do que é considerado um “dilema humano”, ou seja, segurança versus liberdade - quanto maior a liberdade, menor a segurança, e, vice-versa.  Aí está apenas a premissa inicial da trama, que apresentará os diferentes conflitos nas relações familiares e/ou sociais.  Vianne utiliza as diferentes formas do chocolate para destravar cadeados que aprisionavam os cidadãos.
É possível que o Conde, guardião da tradição, projete na estrangeira os seus desejos mais reprimidos. Ela é considerada como modelo de escândalo em seus gestos e atitudes, uma verdadeira ameaça a moral e bons costumes controlados por ele. O poder do conde ultrapassa normas morais e valores ditados por seus ancestrais, ele controla até os sermões do padre, ditando comportamentos religiosos e sociais dos habitantes em nome da tradição. Aos poucos, somos apresentados aos conflitos individuais e familiares de outros personagens. Vianne abre espaço, físico e psicológico, funcionando como terapeuta: aceita as pessoas como elas são e permite a revelação de seus segredos, desejos e potencialidades. Em oposição ao cuidado masculino, opressor e controlador, surge a força do cuidado feminino – até então, subjulgado ao masculino no lugarejo – personificado na transgressora, acolhedora e relacional dona da loja de chocolates. Atenta aos movimentos dos que chegam, a forma de funcionamento de cada um, ela acolhe e aponta o chocolate indicado para o caso. A violência doméstica é revelada, no movimento silencioso da esposa sofrida e perturbada, que apesar de ser subserviente, apresenta distúrbio de comportamento. Aqui, sinalizamos a respeito do psicodiagnóstico processual, que se revela em um contexto, em movimento. Por isso, escolhemos não usar rótulo, para não aprisionar a pessoa ao psicodiagnóstico, que deve servir apenas como contorno para melhor compreensão da trajetória terapêutica. O chocolate, que na cultura dos maias tinha o poder de liberar desejos ocultos, vem cumprir sua missão nas mãos de Vianne, que o ministra como remédio para as almas ou vidas aprisionadas do vilarejo. Aos poucos, exemplos de herança transgeracional, segredo e mitos familiares emergem dentro e fora da loja, mas sempre nas relações com sua dona. A loja de chocolates mais parece confessionário ou consultório psicológico, pois é lá que os personagens encontram espaço para se descortinarem. É no choque entre as diferentes perspectivas - não só do Conde e da vendedora de chocolates, mas também do choque daquela cultura com a dos ciganos -, que novas possibilidades podem surgir. É através da tragédia ou da dor que o crescimento se faz possível. Assim, também acontece com os habitantes do vilarejo, que diante do choque são colocados frente a frente com seus fantasmas. O mesmo ocorre com o conde e com a própria Vianne, que se percebe também aprisionada tradições sem lugar no presente. Tal perspectiva me faz pensar no ofício do psicoterapeuta, que foca no crescimento e autoconhecimento do cliente, mas também é afetado e transformado durante o processo. Vianne também questiona as próprias convicções, descobrindo novas possibilidades. As diferentes perspectivas apontam para o crescimento através das atualizações necessárias, não há certo e errado, são apenas diferentes possibilidades. Sair da mesmice, da repetição ou paralisação é conhecer outras perspectivas e adquirir a capacidade de novas escolhas. Com as mudanças sofridas pelos habitantes, o vilarejo antes cinzento, finalmente, poderá ganhar novas cores, sons e vida. A trama, por esta ótica, personifica o processo terapêutico em suas nuances. Há personagens cativantes, como a filha de Vianne e seu amigo imaginário, outros rígidos em suas convicções, como a viúva e outros habitantes. Hábitos diferentes podem ser confrontados através do encontro com culturas distintas, como é o caso dos piratas. Há romance e poesia. O filme é fonte inesgotável de reflexão, escolhemos não aprofundar, para que não haja spoilers. Valeu a pena rever e perceber novas perspectivas. Chocolate é um filme atual, lúdico, que usa o chocolate como símbolo de transformações possíveis, ora pelo prazer, ora pela dor. O chocolate é o ponto de partida para mudanças. É a partir dele, do chocolate exposto em suas diversas formas e lugares, na vitrine e nas prateleiras, que podemos encontrar novas fontes de percepção, de reflexão, de escolha. Aceita um chocolate? Qual o seu preferido? Você pode escolher! Vale a pena ver de novo!

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