ASSUNTO
Mitos familiares,
herança transgeracional, segredo, questões de gênero, relação familiar,
terapêutica e social, preconceito, amizade e psicodiagnóstico.
SINOPSE
Em 1959,
Vianne (Juliette Binoche) se muda com a filha para uma pequena cidade francesa
e abre uma loja de bombons e chocolates com guloseimas de dar água na boca. Mas
ela enfrenta oposição: é mãe solteira, trabalha aos domingos e prepara doces
que fazem qualquer um ceder à tentação da gula. Alguns moradores planejam
expulsar Vianne da cidade, temendo que ela perturbe a moral do lugar. Tem
início um confronto entre os conservadores e os que desejam o sabor
recém-descoberto.
TRAILER
O
OLHAR DA PSICOLOGIA
Quase
6 anos depois de ter assistido, tive a oportunidade de rever CHOCOLATE, filme
de 2000 repleto de assuntos, um prato cheio para discussão. Podemos começar
pelo uso do chocolate como “remédio para alma”, servindo para libertar os
desejos de quem o consome. Ainda que em menor proporção, o chocolate era indicado
pelos povos antigos como afrodisíaco, por despertar a sensação de prazer.
Vianne herdou dos seus antepassados as receitas mágicas de chocolate. Ao chegar
à Cidade, ela abre uma loja para encantar os consumidores. A cada cliente que
chega, ela aguça sua percepção para o que pode ser revelado, encontrando a
indicação necessária para cada um. Mas, ela não é a única a seguir tradições, o
conde também é guardião de tradição, só que de forma opressora, influenciado
por outras normas (religiosas, sociais e acadêmicas). Aqui temos o encontro das
diferentes perspectivas, o lugar da tensão, do conflito, espaço onde a trama se
desenvolve. Enquanto a dona da doceria representa movimento, o conde é a
personificação da tranquilidade, da rotina, da suposta segurança. As mudanças
não são bem vindas. Ele controla uma sociedade fechada em si mesma, com pessoas
escravizadas pela norma ditadas pela tradição familiar do nobre. Os valores
estagnados são ameaçados pela transgressora, que é mãe solteira. Logo, é
possível perceber as cores alegres das estrangeiras, o que destoa do cinzento e
aparentemente pacato vilarejo. Desde então, já é possível refletir sobre a
dificuldade que há em qualquer mudança, seja em sistemas familiares ou neuroses
pessoais, que insistem estagnar em nome de uma suposta segurança. O novo pode
ser percebido como ameaça. Não se trata de olhar a tradição como algo negativo,
ao contrário, tradição pode ser o suporte necessário para nos adaptarmos às
mudanças, desde que estejamos abertos para atualizações. A tradição do Conde
era controladora, opressora, fechada, aparentemente tranquila e segura. Os
existencialistas já sinalizaram a respeito do que é considerado um “dilema
humano”, ou seja, segurança versus liberdade - quanto maior a liberdade, menor
a segurança, e, vice-versa. Aí está
apenas a premissa inicial da trama, que apresentará os diferentes conflitos nas
relações familiares e/ou sociais. Vianne
utiliza as diferentes formas do chocolate para destravar cadeados que
aprisionavam os cidadãos.
É possível que o Conde, guardião da tradição, projete
na estrangeira os seus desejos mais reprimidos. Ela é considerada como modelo
de escândalo em seus gestos e atitudes, uma verdadeira ameaça a moral e bons
costumes controlados por ele. O poder do conde ultrapassa normas morais e
valores ditados por seus ancestrais, ele controla até os sermões do padre,
ditando comportamentos religiosos e sociais dos habitantes em nome da tradição.
Aos poucos, somos apresentados aos conflitos individuais e familiares de outros
personagens. Vianne abre espaço, físico e psicológico, funcionando como
terapeuta: aceita as pessoas como elas são e permite a revelação de seus
segredos, desejos e potencialidades. Em oposição ao cuidado masculino, opressor
e controlador, surge a força do cuidado feminino – até então, subjulgado ao
masculino no lugarejo – personificado na transgressora, acolhedora e relacional
dona da loja de chocolates. Atenta aos movimentos dos que chegam, a forma de
funcionamento de cada um, ela acolhe e aponta o chocolate indicado para o caso.
A violência doméstica é revelada, no movimento silencioso da esposa sofrida e
perturbada, que apesar de ser subserviente, apresenta distúrbio de
comportamento. Aqui, sinalizamos a respeito do psicodiagnóstico processual, que
se revela em um contexto, em movimento. Por isso, escolhemos não usar rótulo,
para não aprisionar a pessoa ao psicodiagnóstico, que deve servir apenas como
contorno para melhor compreensão da trajetória terapêutica. O
chocolate, que na cultura dos maias tinha o poder de liberar desejos ocultos,
vem cumprir sua missão nas mãos de Vianne, que o ministra como remédio para as
almas ou vidas aprisionadas do vilarejo. Aos poucos, exemplos de herança
transgeracional, segredo e
mitos familiares emergem dentro e fora da loja, mas sempre nas relações com sua
dona. A loja de chocolates mais parece confessionário ou consultório
psicológico, pois é lá que os personagens encontram espaço para se
descortinarem. É no choque entre as diferentes perspectivas - não só do Conde e
da vendedora de chocolates, mas também do choque daquela cultura com a dos
ciganos -, que novas possibilidades podem surgir. É através da tragédia ou da
dor que o crescimento se faz possível. Assim, também acontece com os habitantes
do vilarejo, que diante do choque são colocados frente a frente com seus
fantasmas. O mesmo ocorre com o conde e com a própria Vianne, que se percebe
também aprisionada tradições sem lugar no presente. Tal perspectiva me faz
pensar no ofício do psicoterapeuta, que foca no crescimento e autoconhecimento
do cliente, mas também é afetado e transformado durante o processo. Vianne também
questiona as próprias convicções, descobrindo novas possibilidades. As diferentes
perspectivas apontam para o crescimento através das atualizações necessárias,
não há certo e errado, são apenas diferentes possibilidades. Sair da mesmice,
da repetição ou paralisação é conhecer outras perspectivas e adquirir a
capacidade de novas escolhas. Com as mudanças sofridas pelos habitantes, o vilarejo
antes cinzento, finalmente, poderá ganhar novas cores, sons e vida. A trama,
por esta ótica, personifica o processo terapêutico em suas nuances. Há
personagens cativantes, como a filha de Vianne e seu amigo imaginário, outros
rígidos em suas convicções, como a viúva e outros habitantes. Hábitos
diferentes podem ser confrontados através do encontro com culturas distintas,
como é o caso dos piratas. Há romance e poesia. O filme é fonte inesgotável de reflexão,
escolhemos não aprofundar, para que não haja spoilers. Valeu a pena rever e
perceber novas perspectivas. Chocolate é um filme atual, lúdico, que usa o
chocolate como símbolo de transformações possíveis, ora pelo prazer, ora pela
dor. O chocolate é o ponto de partida para mudanças. É a partir dele, do
chocolate exposto em suas diversas formas e lugares, na vitrine e nas prateleiras,
que podemos encontrar novas fontes de percepção, de reflexão, de escolha. Aceita
um chocolate? Qual o seu preferido? Você pode escolher! Vale a pena ver de
novo!
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