domingo, 28 de fevereiro de 2016

A caça

ASSUNTO
Pedofilia, pré-julgamento, relação terapêutica, familiar e social, psicoterapia, investigação psicológicas, calúnia, sexualidade

SINOPSE
Não recomendado para menores de 14 anos 
2012 - Lucas (Mads Mikkelsen) trabalha em uma creche. Simpático e amigo de todos, ele tenta reconstruir a vida após um divórcio complicado, no qual perdeu a guarda do filho. Tudo corre bem até que, um dia, a pequena Klara (Annika Wedderkopp), de apenas cinco anos, diz à diretora da creche que Lucas lhe mostrou suas partes íntimas. Klara na verdade não tem noção do que está dizendo, apenas quer se vingar por se sentir rejeitada em uma paixão infantil que nutre por Lucas. A acusação logo faz com que ele seja afastado do trabalho e, mesmo sem que haja algum tipo de comprovação, seja perseguido pelos habitantes da cidade em que vive.

TRAILER

O OLHAR DA PSICOLOGIA

Difícil, angustiante, porque não dizer, dilacerante. O tema central do filme é um assunto delicado, difícil e desconfortável, a possibilidade de pedofilia. Assunto que causa revolta, inconformismo, prejuízos incalculáveis para os envolvidos. Entretanto, nem sempre a acusação de pedofilia é verídica. Difícil ser imparcial num processo semelhante, que pode promover reações imprevisíveis. A trama foca numa acusação inocente, sem bases consistentes, mas é o suficiente para marcar a vida do acusado e despertar reações psicológicas, físicas e emocionais incontroláveis em seu entorno. Sim, é doloroso se colocar no lugar do professor acusado injustamente. É impressionante assistir o processo que transforma a sua vida, sem que isso afete a sua forma doce de lidar com as crianças, mesmo em relação àquela que foi fonte de seu sofrimento. Se, por um lado temos uma pessoa acusada injustamente, por outro, temos pessoas reagindo à possibilidade de um fato grotesco, a pedofilia. Inimaginável se colocar no lugar dos pais em situação semelhante. Tudo começa com uma reação infantil a uma frustração. A pequena Klara, inconformada com a sensação de rejeição, busca em sua imaginação uma forma de se vingar. Sua experiência recente com o irmão mais velho oferece material suficiente para sua vingança. Ela não tinha ideia do que viu, ouviu e usou em como fonte, muito menos das possíveis consequências de sua ação. Acompanhamos o cuidado inicial da diretora da creche, que pretendia investigar o caso com cuidado. No entanto, ela também é contaminada pelas atitudes inconsequentes do profissional recomendado para averiguar o caso, o psicólogo da escola. Teremos, então, um exemplo equivocado de investigação. No lugar de aguardar o fenômeno se revelar, acompanhamos um processo indutivo por parte do profissional. Sim, infelizmente, o profissional induz a criança durante a entrevista. Na conversa, fica claro que ele parte do pressuposto de ter ocorrido o abuso, de que o professor é culpado, o equívoco profissional começa aí. A equivocada entrevista do profissional é o ponto de partida para o desdobramento da trama, nos colocando no lugar do acusado, que acaba por ser estigmatizado sem que haja provas suficientes. Se por um lado, o filme apresenta um exemplo equivocado de entrevista psicológica, por outro, nos abre a oportunidade de auxílio ao acusado, permitindo outra perspectiva.
Em Gestalt-terapia é primordial uma atitude fenomenológica, ou seja, o foco é o fenômeno que se revela. Para focalizar o que está ali presente, se revelando no contato, na relação, é necessário lidar com o novo como “novo”, sem a priori. As perguntas fechadas, baseadas em suposições a priori, acabam gerando respostas que vão de encontro com as ideias do entrevistador. Assim ocorre o processo equivocado de encontro entre o psicólogo e a criança, induzindo o erro de avaliação que se amplia, contaminando todo entorno. Devemos salientar a importância de discutirmos o assunto mais profundamente. A pedofilia se torna um assunto intragável não só por sua possibilidade real, mas por conta do sexo ser ainda um tabu, que é pouco discutido em sociedade. O que é dito em relação a sexualidade é ainda cercado por fantasias, pouco é discutido com a seriedade necessária. No consultório, muitas vezes surgem casos de crianças supostamente molestadas. Na maior parte das vezes, o pior não é o acontecimento em si, que nem sempre ocorre como foi relatado, mas a reação dos responsáveis. A dificuldade de lidar o assunto acaba contaminando o relato, que é acrescido de inúmeras interpretações que não correspondem ao fato. Além disso, a violência nas reações acaba chamando atenção para um olhar negativo sobre o que pode nem ter acontecido, mas o sexo pode ficar contaminado com essa perspectiva negativa. Para o psicólogo, muitas vezes é necessário ir além dos fatos, e trabalhar a família, no sentido de abrir espaço para trocas saudáveis sobre sexo, promovendo melhor diálogo em família. Livros infantis sobre o assunto, como “De onde eu vim” e “De onde vem os bebês”, podem ser lidos para crianças a partir dos 6 anos. No entanto, antes disso, é preciso que os pais fiquem à vontade para falar com naturalidade sobre o tema.  O fato é mais comum do que se imagina, estigmatizando pessoas ao longo da história. No Brasil, por exemplo, há uma Associação de Vítimas de Falsas Denúncias de Abuso Sexual (AVFDAS), criada para auxiliar e dar apoio a sujeitos equivocadamente tachados de abusadores. A caça se revela um alerta para casos semelhantes, ao retratar o fato, que na trama é contaminado pela falsa premissa “a criança não mente”. Nem sempre há intenção de mentir, tendo em vista que a criatividade é vasta na infância, muitas vezes preenchendo lacunas de fatos insuportáveis, que são lembrados na vida adulta como fatos. O filme alerta sobre o perigo de julgamento e suas possíveis consequências, principalmente em tempo de internet, onde a propagação de uma calúnia pode tomar proporções gigantescas. Independente do desfecho pouco verossímil, que mostra uma transformação rápida e mágica, seguida pelo retrato da permanência do seu estigma, o filme é um alerta e uma denúncia, fonte de intermináveis debates sobre assuntos como, calúnia, pré-julgamentos, difamação, sexualidade e pedofilia, mesmo que não ocorra de fato. 

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