Regime totalitário, relações sociais, relações afetivas, solidão, arte, criatividade, sociedade do espetáculo, eu-outro, individualidade, identidade, História: Guerra Fria, Cortina de Ferro.
SINOPSE
Em 1984, quando o muro de Berlim ainda estava intacto e a Alemanha era dividida em duas, o autor teatral Georg Dreyman acredita fielmente no socialismo da República Democrática Alemã (RDA), se mantendo como um dos poucos intelectuais insuspeitos. Sedento pelo poder, o Ministro da Cultura Bruno Hempf decide investigar o autor, que, se tiver algum podre escondido, pode lhe render maiores cargos, além de mais liberdade em na relação com sua amante, a atriz fetiche e namorada de Dreyman, Christa-Maria Sieland. O oficial designado para a missão é Gerd Wiesler, o melhor interrogador da Stasi, a polícia política do regime. Vigiando momentos íntimos da vida de Dreyman, o agente passa a entender como os intelectuais enxergam a RDA, e passa ele mesmo a questionar os métodos usados, de invadirA Vida dos Outros. Quando um grande amigo de Georg se mata e ele descobre que o regime esconde os registros de suicídio, o escritor decide publicar secretamente um artigo sobre isto no Ocidente. Wiesler, então, terá que escolher de que lado irá ficar. Leia mais clicando aqui.
TRAILER
Indicado pela colega Rosane Pimentel, o filme revela uma realidade pouco explorada, ocorrida na Berlim Oriental de 1984. De fato, a forma como o governo controlava a população parece algo muito distante da realidade que é conhecida por muitos de nós. Não falamos da Alemanha de Hitler, falamos de pouco antes da derrubada do muro de Berlim. Uma história recente, com personagens que ainda estão vivos para contar o que viveram. É importante retomar a história para que seja possível compreender o que o filme retrata. Após a guerra, a Europa estava destruída e precisava se reerguer. Diversas reuniões entre os líderes políticos mundiais resultaram na divisão da Europa. O Leste ficou sob o domínio do Bloco Socialista (países da CORTINA DE FERRO) e o Oeste europeu ficou com o bloco capitalista. Na Alemanha de 1949 é formada a RDA (República Democrática Alemã) ou Alemanha Oriental. A política do líder sociético Stalin é muito dura em países como a Alemanha. O Estado possuía poder absoluto sobre a vida dos alemães de então e criam o Ministério de Segurança do Estado (STASI). A STASI funcionava nos moldes soviéticos, tornando-se um serviço Secreto de ideais socialistas caminhando para o totalitarismo. Sendo “o Escudo e a espada do partido”, a STASI sufocava qualquer possibilidade de oposição, garantindo os ideais do Estado através de violência física e/ou psicológica, prisões, espionagem e censura. O regime totalitário estabeleceu o terror, restando pouco espaço para a humanidade de cada indivíduo, como veremos no filme.
“A vida dos outros” me fez lembrar “1984”, livro escrito por Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo pseudônimo de George Orwell. Publicado em 1949, o Best Seller retrata o cotidiano de um regime político totalitário e repressivo no ano homônimo. Também o filme retrata acontecimentos históricos semelhantes ocorridos em 1984. Assim como no livro, o “grande irmão” (Big Brother) tudo vê, reprimindo qualquer tipo de expressão que possa ameaçar o regime. A individualidade é uma ameaça. No livro, é Smith quem fica cada vez mais desiludido com sua existência miserável, iniciando assim uma rebelião contra o sistema. No filme, temos outro personagem que não é líder de uma rebelião popular, mas é aquele que inicia, sim, uma rebelião individual. Wiesler foi o oficial indicado para a missão de vigiar a “vida dos outros”, de forma a atender as expectativas de seus superiores. A vigilância invasiva frequente tinha como finalidade encontrar possíveis indícios de traição ao sistema vigente. A competência do militar é retratada em cada gesto do personagem, que a todo o momento nos lembra um robô, tamanha frieza e impessoalidade exibida. Wiesler é a personificação do Regime, nos provocando, a cada instante, sucessivos incômodos. O alvo em questão é um artista que foi considerado livre de suspeitas até então, mas que se revelou como um grande obstáculo aos interesses pessoais de indivíduos que pertenciam à cúpula do poder.
O OLHAR DA PSICOLOGIA
O OLHAR DA PSICOLOGIA
Durante o processo de vigília o filme vai revelando em detalhes a discrepância entre a vida dos outros e a rotina imposta pelo Estado. Fica evidente o contraste entre os movimentos vazios e autômatos do nosso algoz e a vida que transborda em sons, sensações e imagens da vida “dos outros”. A trama nos convida a refletir sobre comportamento antagônicos, como: padrão e transgressão, semelhança e diferença, certo e errado, verdade e mentira, obediência e criatividade, estagnação e movimento. Nosso algoz é o extremo da estagnação, beirando a perfeição, o oficial é atravessado pelos princípios do partido, se tornando o “Grande Irmão”, especializado em sua função. Entretanto, há uma pessoa atrás daqueles movimentos robóticos, há um ser com algum resquício de humanidade. A vida daqueles, outros que ele vigia para reprimir, é também e principalmente uma vida pulsante e diferente de tudo que conhece. O ritmo, as cores e o movimento daquelas vidas passam a exercer certo fascínio ao militar, denunciam a pequenez da sua forma de funcionamento até então. A cena na qual ele pede a prostituta para ficar mais um pouco evidencia seu desejo de experimentar o novo. Seu lugar se torna estreito, sem vida, luz ou movimento e a rebelião interna é iniciado. Já não faz mais tanto sentido aqueles princípios que seguia com orgulho, essa vida se tornara opaca. A vida que não pode ser vivida é talvez a que não consiga viver, mas seria necessário tirá-la dos outros? A vida do artista é a arte de uma vida criativa, muito diferente do que supunha ser vida até então. A arte de viver daquelas pessoas afeta e desperta seus sentidos. Já não é possível obedecer sem refletir, já não é mais possível apenas seguir ordens. A experiência abre um pequeno espaço para novas possibilidades, sua competência pode ser ferramenta para novos fins ou inícios. A trama propõe uma reflexão sobre identidade e identificação, sobre individualidade frente ao mundo, sobre diferentes formas de funcionar no mundo. O filme retrata a história da opressão que dita modelo de comportamentos, tentativas explícitas de formatar ou moldar um grupo social aos interesses do poder. A crueldade da proposta nos provoca outras reflexões sobre padrões de comportamento, sobre a sociedade do espetáculo, os reality shows, a ditadura do corpo, a nova forma de nos moldar conforme o interesse do poder. Até que ponto nós respeitamos nossas diferenças, criatividades, nossa arte de viver? O homem bom do filme consegue apenas não corromper o outro, mas sua vida permanece no padrão que o doutrinou. Qual é o padrão vigente na contemporaneidade que pode sufocar minha arte de viver? O filme é um retrato histórico que incomoda bastante, vale a pena conferir!
A trama, porém, concentra-se sobre a atuação da Stasi, a polícia secreta da antiga Alemanha Oriental, a qual mantinha uma política agressiva de espionagem sobre todo e qualquer cidadão passível de representar a mínima ameaça para o regime de partido único. Um “Big Brother” institucionalizado na vida dos Ossis (como eram chamados os moradores da porção leste alemã). Tão institucionalizado a ponto de os próprios alemães orientais desconfiarem de seus vizinhos, familiares, ou de uma possível escuta em casa. Por vias das dúvidas, a fim de evitar problemas com a polícia, melhor fingir, representar na própria vida privada. Feito a casa do BBB. (...) Por intermédio de atuações “underplayed” – isto é, contidas e sutis, um tom abaixo do convencional –, o quadro psicológico de cada personagem vai se configurando lentamente para o espectador. Dessa forma, o que parece ser não corresponde exatamente àquilo que de fato é. À primeira vista, estamos diante de um escritor inabalável em sua crença nos ideais socialistas, de uma atriz de sucesso, segura e apaixonada, e de um oficial da Stasi, frio e implacável. Num ritmo tenso, sob uma fotografia densa e azulada, cada um dos três vai se modificando, despindo-se mais profundamente. Dreyman, o dramaturgo, torna-se crítico e cético em relação ao sistema; Christa-Maria, a estrela de teatro, frágil e insegura; e Wiesler, o espião, sensível e solidário. (...) O outro fragmento pode ser descrito mais resumidamente: trata-se da primeira seqüência na qual o espectador toma contato com o apartamento asséptico e gelado do Capitão Wiesler. (...) “A Vida dos Outros” tem a grande qualidade de narrar um episódio historicamente datado, conectando-o ao momento atual do mundo econômica e culturalmente globalizado. O fenômeno do totalitarismo alemão-oriental, no qual havia, de fato e de direito, um “grande irmão” que tudo via e escutava, encaixa-se com perfeição no fenômeno da “espetacularização” da vida privada do momento social presente. Ambos são análogos: no primeiro, o estado formalmente autoritário impõe por meios explicitamente violentos a perda da individualidade e, portanto, dos valores de bem e mal; no caso da “sociedade do espetáculo” da atualidade, essa dissipação da individualidade também se dá, só que de forma velada, na medida em que muito da legitimidade social advém do olhar do outro. O carro dos ricos e famosos, as roupas dos artistas, a escova progressiva da atriz de novela, a casa e o quarto fotografados para a revista de celebridades, tudo isso opera como parâmetro de inclusão. E, para se incluir, vale tudo, esquecer ética e valores. Leia mais clicando aqui. |
CRÍTICA DA REVISTA VEJA
Não indico ler o artigo seguinte antes de ver o filme, pois a psicanalista Rosa Maria Oranges Gonçalves analisou a trama em detalhes:
Wiesler é um homem extremamente só. Sua casa é o tipo de casa que nos ajuda a diferenciar entre uma casa e um lar. Materializa o deserto afetivo dele. Não há cor, musica ou plantas. Não há fotografias mostrando alguém ou alguma coisa a ser lembrada. Não há filhos, amigos, vizinhos. Nem uma mulher que o espere com saudade. Se distrai da comida que parece não ter gosto, na frente da TV. E a TV que poderia ser uma forma de vínculo com o mundo, não à toa, está sintonizada na propaganda do Estado. È um mundo fechado. Necessariamente fechado.
Esse deserto afetivo permite que Wiesler seja um funcionário modelo da família Stasi. O autoriza a torturar, se julgar necessário. Não há afeto, não há empatia. O interrogatório transformado em tortura, no início do filme, mostra que para ele, do outro lado da mesa, há um inimigo, não um homem sofrendo! Isto se constitui em importante material didático para os novos alunos da Stasi. Ele já esteve nessa posição. Junto ao colega Grubitz, também foi doutrinado. Agora exibe com orgulho sua habilidade no uso das técnicas de interrogatório. E ensina: os prisioneiros são inimigos! Esse é o Sistema. Não existe o eu e o outro. O que existe é o nós . O outro se for diferente, é o inimigo. NÓS X ELES.
Ao ser designado para a “Operação Lazlo”, porém, as crenças de Wiesler sofrerão um enorme abalo. Sair dos muros protetores da Stasi, do mundo árido e fechado de sua casa e entrar no mundo de Dreyman, o escritor, será uma experiência da qual sairá profundamente transformado
Esse deserto afetivo permite que Wiesler seja um funcionário modelo da família Stasi. O autoriza a torturar, se julgar necessário. Não há afeto, não há empatia. O interrogatório transformado em tortura, no início do filme, mostra que para ele, do outro lado da mesa, há um inimigo, não um homem sofrendo! Isto se constitui em importante material didático para os novos alunos da Stasi. Ele já esteve nessa posição. Junto ao colega Grubitz, também foi doutrinado. Agora exibe com orgulho sua habilidade no uso das técnicas de interrogatório. E ensina: os prisioneiros são inimigos! Esse é o Sistema. Não existe o eu e o outro. O que existe é o nós . O outro se for diferente, é o inimigo. NÓS X ELES.
Ao ser designado para a “Operação Lazlo”, porém, as crenças de Wiesler sofrerão um enorme abalo. Sair dos muros protetores da Stasi, do mundo árido e fechado de sua casa e entrar no mundo de Dreyman, o escritor, será uma experiência da qual sairá profundamente transformado
Entrar no mundo de Dreyman, é entrar em um mundo desconhecido ou há muito esquecido. Um mundo oposto ao dele. O escritor é um homem charmoso, inteligente, gentil, capaz de atrair pessoas a sua volta. Suporta as diferenças entre as pessoas, tanto que tem amigos no governo e entre os mais ferozes opositores do Regime, também. Sua casa, ao contrário da casa de Wiesler, é um lar, tem vida! Tem plantas, muitos livros, poesia, fotografias, jornais e revistas, um piano. A comida é fresca. Os vizinhos são amigos e além deles, tem muitos outros amigos. Ama e é amado por Christa-Maria, sua namorada. Os sons da casa vem da musica, da conversa, da festa, do sexo.
Socialista convicto, Dreyman é considerado confiável pelo governo. Será espionado por razões pessoais do Ministro Hempf que quer vê-lo fora do caminho, facilitando o acesso à sua obsessão do momento, a atriz Christa-Maria. Dreyman não aprova muitos aspectos do que se passa à sua volta mas se mantém um tanto distante de realmente encarar a terrível realidade que o cerca. A Ditadura tinha sido implacável no meio artístico. Para sobreviver como escritor ele nega muitas coisas, até que o suicídio do amigo e diretor teatral, Albert Jerska, e o assédio brutal do poderoso Ministro Hempf sobre sua namorada, modificam sua conduta. Decide denunciar o Regime, acusando-o de levar ao desespero, pessoas arrancadas de suas identidades. Como o próprio amigo havia dito a ele: “O que é um diretor que não pode dirigir?” Nada. Absolutamente nada. Assim, Dreyman decide denunciar o grande número de suicídios na Alemanha Oriental, assunto proibido, e publicar o texto no exterior.
Desde a primeira visão que tem de Dreyman, ainda no teatro, Wiesler se sente atraído por ele, por Christa-Maria, pela relação dos dois, pelo mundo deles. Passar a ouvir os sons da casa, as conversas, os ruídos do sexo, dispara um processo dentro dele. Desperta, a meu ver, a noção de afeto e portanto, a falta dele. Quando ele recebe a prostituta em sua casa, depois do ato sexual ele enfia a cabeça entre os seios da mulher que profissionalmente levanta-se e veste-se para o próximo cliente. Ele pede, quase implora a ela que fique um pouco mais. Essa comovente cena expõe toda carência, todo desamparo dele. Ele precisa de algo mais do que sexo. Talvez amor...Mas ele se recompõe, rapidamente...
Contudo, uma vez disparado, é difícil interromper um processo como esse. Cada vez mais curioso por aquele admirável mundo novo, Wiesler vai ao apartamento do escritor. Parece querer sentir o cheiro de lá. Toca a cama do casal, olha cada detalhe do lugar. Assim, pouco a pouco, a aridez de sua vida vai sendo substituída pela leitura do Brecht roubado de Dreyman, pela visão do sofrimento do casal sendo achacado pelo Ministro, pela audição da sonata tocada quando o diretor de teatro se suicida. Seus sentidos e mais amplamente, sua mente, vão sendo penetrados por outros sons, cheiros, idéias, gestos, crenças, costumes. Uma lágrima escorre na face congelada dele.
Dreyman lembra-se de Lenin que ao ouvir a “Appassionatta” de Beethoven teria dito que se continuasse a ouvi-la, não levaria a cabo a Revolução. E questiona, se um homem que pode ouvir verdadeiramente uma música como aquela, pode ser um homem mau. Vai assim nomeando o que está acontecendo dentro de Wiesler, que o ouve, muito atento, do outro lado do fio.
Ele não é mais um robô ouvindo pessoas conversarem. Seu rosto vai adquirindo uma expressão humana. E passa a interferir nos fatos como quando tenta impedir que Christa-Maria se encontre com o Ministro. Ou quando decide falsificar os relatos.
Acho interessante lembrar que a turbulência gerada pela integração de aspectos tão cindidos, faz com que em alguns momentos Wiesler tente retomar suas defesas . Um exemplo disso é quando pensa em denunciar o escritor e quase o faz... Mas...não consegue. Ele cada vez mais protege Dreyman que questiona cada vez mais ferrenhamente o regime acreditando que seu apartamento é seguro. E a partir daí, compartilhar a escuta torna-se perigoso. È necessário ficar sózinho e ele consegue tirar o turno, do colega.
A publicação do texto de Dreyman na Alemanha Ocidental é um duro golpe no Regime que passa a procurar o autor. Presa e acuada, Christa-Maria delata o namorado mas Wiesler impede que a máquina de onde saiu o artigo seja encontrada pela Stasi. Ele tira a máquina do esconderijo. Mas o escritor se dá conta da delação da namorada. Ao ser desmascarada, a atriz prefere morrer, desesperada pela dor e pela culpa. Isso determina o fim da “Operação Lazlo”. Mais uma vez Wiesler salva Dreyman. Mais uma vez salva a si mesmo!
É punido pelo Estado, por incompetência. Quando, pouco mais de quatro anos depois, em 9 de novembro de 1989 o muro que até então racha Berlim em duas, é derrubado, ele está abrindo cartas em um porão, como garantira, Grubitz. È o fim daquela era terrível. Com a mudança de poder na URSS, a Alemanha se reunifica. E depois de décadas de Totalitarismo, primeiro de direita, com o nazismo e depois de esquerda, está livre.
Dois anos mais tarde, Dreyman que não escreve mais, assiste a uma reapresentação de sua peça que Christa-Maria havia encenado anos antes. Ao se encontrar com o então ex-ministro Hempf, também presente ao teatro, descobre que havia sido investigado. Começa, então a pesquisar porque não entende como não havia sido denunciado.
Fica estarrecido ao saber da “Operação Lazlo”, e percebe que tinha estado sob a proteção do agente HGW XX/7, da Stasi. Lê a confissão de Christa-Maria denunciando-o pelo artigo e contando onde estava a maquina de escrever. Ele sempre havia acreditado que ela, de alguma maneira, havia tirado a maquina do esconderijo. Descobre então, ao lado da anotação de Wiesler registrando o final da Operação, sua digital impressa com a tinta vermelha da máquina. Wiesler havia deixado sua assinatura ! E assim, Dreyman o descobre. E percebe o ato grandioso deste homem que havia salvado a sua vida. Mas, o que dizer ? Que palavras poderiam estar a altura daquele gesto ?
Mais dois anos se passam e Wiesler, agora um carteiro, vê um pôster anunciando um novo livro do escritor. Na cena mais tocante do filme, a meu ver, Wiesler descobre que o livro havia sido a forma de Dreyman demonstrar sua gratidão. Comove-se com isso. O nome do livro: “Sonata para um homem bom”.
Ao ser questionado pelo caixa se o livro era para presente, ele responde com orgulho, “Não, é para mim!” Essa resposta curta e de duplo sentido sintetiza muita coisa. Ele está dizendo que o livro foi feito para ele. Em sua homenagem. Ele é o homem bom! E... pode falar na primeira pessoa. Ele não é mais o NÓS, da Stasi. Esse simples carteiro tinha um tesouro dentro de si, e uma história da qual podia se orgulhar !
Retomando as questões levantadas anteriormente sobre o que poderia ter proporcionado a transformação de Wiesler, acho que a metáfora pode ser a derrubada do muro de Berlim. Esta cidade é uma só mas está artificialmente dividida em duas. O lado dominado pelo Totalitarismo não permite troca com o outro lado considerado inimigo. Dominado pelo Totalitarismo, a meu ver pelo medo das conseqüências de ter que arcar com a própria subjetividade, de pensar e agir por conta própria, Wiesler é exposto a uma situação onde vai percebendo um “inimigo” que ele não consegue odiar. Pelo contrario, o inimigo o atrai, o apresenta à poesia, à boa musica, ao calor humano, às múltiplas possibilidades existentes na relação homem-mulher, à fraternidade, à reparação, à coragem de dizer basta ! Ainda que sem trocar uma só palavra ou um único olhar, essas experiências gradativamente introjetadas por Wiesler, derrubam o muro que havia em sua mente, permitindo que perceba recursos pessoais há muito esquecidos ou nunca antes conhecidos. O contato com Dreyman e Christa-Maria, fizeram com que ele não pudesse continuar com a “Revolução”.
Ele está em outra direção. A medida em que consegue uma maior integração interna, que descobre um bom objeto dentro de si, atinge a meu ver, o que o Winnicott descreve como a capacidade de estar só. Um fenômeno altamente sofisticado. Estar só não significa aqui sentimento de abandono, de desamparo. Pelo contrário, os sentimentos são ligados à liberdade, à confiança de poder correr os riscos da diferença. O outro não sendo mais objeto de projeções poderá ser visto como diferente, não inimigo. Alguém com quem ele pode trocar e se relacionar.
A capacidade de estar só representa a percepção profunda da própria identidade que vai então, organizar a vida, o pensamento, a conduta. Que vai trazer a possibilidade de inovar e criar.
Diante de um filme tão rico, eu poderia ter tomado vários caminhos para construir meu comentário. Acho que seria muito interessante abordar, como me parece que o diretor do filme o fez, o tema da Arte como fator de transformação do individuo. Ou ainda, ter tomado outros tantos caminhos. Contudo, acho que a psicanálise não pode abrir mão da história. O ideal de saúde é também político. Um Sistema Totalitário, impede a mais fundamental das experiências humanas: o trocar e o compartilhar que constrói a identidade de cada um, o processo que podemos chamar de humanização. Mais sobre o artigo, clique aqui.
Socialista convicto, Dreyman é considerado confiável pelo governo. Será espionado por razões pessoais do Ministro Hempf que quer vê-lo fora do caminho, facilitando o acesso à sua obsessão do momento, a atriz Christa-Maria. Dreyman não aprova muitos aspectos do que se passa à sua volta mas se mantém um tanto distante de realmente encarar a terrível realidade que o cerca. A Ditadura tinha sido implacável no meio artístico. Para sobreviver como escritor ele nega muitas coisas, até que o suicídio do amigo e diretor teatral, Albert Jerska, e o assédio brutal do poderoso Ministro Hempf sobre sua namorada, modificam sua conduta. Decide denunciar o Regime, acusando-o de levar ao desespero, pessoas arrancadas de suas identidades. Como o próprio amigo havia dito a ele: “O que é um diretor que não pode dirigir?” Nada. Absolutamente nada. Assim, Dreyman decide denunciar o grande número de suicídios na Alemanha Oriental, assunto proibido, e publicar o texto no exterior.
Desde a primeira visão que tem de Dreyman, ainda no teatro, Wiesler se sente atraído por ele, por Christa-Maria, pela relação dos dois, pelo mundo deles. Passar a ouvir os sons da casa, as conversas, os ruídos do sexo, dispara um processo dentro dele. Desperta, a meu ver, a noção de afeto e portanto, a falta dele. Quando ele recebe a prostituta em sua casa, depois do ato sexual ele enfia a cabeça entre os seios da mulher que profissionalmente levanta-se e veste-se para o próximo cliente. Ele pede, quase implora a ela que fique um pouco mais. Essa comovente cena expõe toda carência, todo desamparo dele. Ele precisa de algo mais do que sexo. Talvez amor...Mas ele se recompõe, rapidamente...
Contudo, uma vez disparado, é difícil interromper um processo como esse. Cada vez mais curioso por aquele admirável mundo novo, Wiesler vai ao apartamento do escritor. Parece querer sentir o cheiro de lá. Toca a cama do casal, olha cada detalhe do lugar. Assim, pouco a pouco, a aridez de sua vida vai sendo substituída pela leitura do Brecht roubado de Dreyman, pela visão do sofrimento do casal sendo achacado pelo Ministro, pela audição da sonata tocada quando o diretor de teatro se suicida. Seus sentidos e mais amplamente, sua mente, vão sendo penetrados por outros sons, cheiros, idéias, gestos, crenças, costumes. Uma lágrima escorre na face congelada dele.
Dreyman lembra-se de Lenin que ao ouvir a “Appassionatta” de Beethoven teria dito que se continuasse a ouvi-la, não levaria a cabo a Revolução. E questiona, se um homem que pode ouvir verdadeiramente uma música como aquela, pode ser um homem mau. Vai assim nomeando o que está acontecendo dentro de Wiesler, que o ouve, muito atento, do outro lado do fio.
Ele não é mais um robô ouvindo pessoas conversarem. Seu rosto vai adquirindo uma expressão humana. E passa a interferir nos fatos como quando tenta impedir que Christa-Maria se encontre com o Ministro. Ou quando decide falsificar os relatos.
Acho interessante lembrar que a turbulência gerada pela integração de aspectos tão cindidos, faz com que em alguns momentos Wiesler tente retomar suas defesas . Um exemplo disso é quando pensa em denunciar o escritor e quase o faz... Mas...não consegue. Ele cada vez mais protege Dreyman que questiona cada vez mais ferrenhamente o regime acreditando que seu apartamento é seguro. E a partir daí, compartilhar a escuta torna-se perigoso. È necessário ficar sózinho e ele consegue tirar o turno, do colega.
A publicação do texto de Dreyman na Alemanha Ocidental é um duro golpe no Regime que passa a procurar o autor. Presa e acuada, Christa-Maria delata o namorado mas Wiesler impede que a máquina de onde saiu o artigo seja encontrada pela Stasi. Ele tira a máquina do esconderijo. Mas o escritor se dá conta da delação da namorada. Ao ser desmascarada, a atriz prefere morrer, desesperada pela dor e pela culpa. Isso determina o fim da “Operação Lazlo”. Mais uma vez Wiesler salva Dreyman. Mais uma vez salva a si mesmo!
É punido pelo Estado, por incompetência. Quando, pouco mais de quatro anos depois, em 9 de novembro de 1989 o muro que até então racha Berlim em duas, é derrubado, ele está abrindo cartas em um porão, como garantira, Grubitz. È o fim daquela era terrível. Com a mudança de poder na URSS, a Alemanha se reunifica. E depois de décadas de Totalitarismo, primeiro de direita, com o nazismo e depois de esquerda, está livre.
Dois anos mais tarde, Dreyman que não escreve mais, assiste a uma reapresentação de sua peça que Christa-Maria havia encenado anos antes. Ao se encontrar com o então ex-ministro Hempf, também presente ao teatro, descobre que havia sido investigado. Começa, então a pesquisar porque não entende como não havia sido denunciado.
Fica estarrecido ao saber da “Operação Lazlo”, e percebe que tinha estado sob a proteção do agente HGW XX/7, da Stasi. Lê a confissão de Christa-Maria denunciando-o pelo artigo e contando onde estava a maquina de escrever. Ele sempre havia acreditado que ela, de alguma maneira, havia tirado a maquina do esconderijo. Descobre então, ao lado da anotação de Wiesler registrando o final da Operação, sua digital impressa com a tinta vermelha da máquina. Wiesler havia deixado sua assinatura ! E assim, Dreyman o descobre. E percebe o ato grandioso deste homem que havia salvado a sua vida. Mas, o que dizer ? Que palavras poderiam estar a altura daquele gesto ?
Mais dois anos se passam e Wiesler, agora um carteiro, vê um pôster anunciando um novo livro do escritor. Na cena mais tocante do filme, a meu ver, Wiesler descobre que o livro havia sido a forma de Dreyman demonstrar sua gratidão. Comove-se com isso. O nome do livro: “Sonata para um homem bom”.
Ao ser questionado pelo caixa se o livro era para presente, ele responde com orgulho, “Não, é para mim!” Essa resposta curta e de duplo sentido sintetiza muita coisa. Ele está dizendo que o livro foi feito para ele. Em sua homenagem. Ele é o homem bom! E... pode falar na primeira pessoa. Ele não é mais o NÓS, da Stasi. Esse simples carteiro tinha um tesouro dentro de si, e uma história da qual podia se orgulhar !
Retomando as questões levantadas anteriormente sobre o que poderia ter proporcionado a transformação de Wiesler, acho que a metáfora pode ser a derrubada do muro de Berlim. Esta cidade é uma só mas está artificialmente dividida em duas. O lado dominado pelo Totalitarismo não permite troca com o outro lado considerado inimigo. Dominado pelo Totalitarismo, a meu ver pelo medo das conseqüências de ter que arcar com a própria subjetividade, de pensar e agir por conta própria, Wiesler é exposto a uma situação onde vai percebendo um “inimigo” que ele não consegue odiar. Pelo contrario, o inimigo o atrai, o apresenta à poesia, à boa musica, ao calor humano, às múltiplas possibilidades existentes na relação homem-mulher, à fraternidade, à reparação, à coragem de dizer basta ! Ainda que sem trocar uma só palavra ou um único olhar, essas experiências gradativamente introjetadas por Wiesler, derrubam o muro que havia em sua mente, permitindo que perceba recursos pessoais há muito esquecidos ou nunca antes conhecidos. O contato com Dreyman e Christa-Maria, fizeram com que ele não pudesse continuar com a “Revolução”.
Ele está em outra direção. A medida em que consegue uma maior integração interna, que descobre um bom objeto dentro de si, atinge a meu ver, o que o Winnicott descreve como a capacidade de estar só. Um fenômeno altamente sofisticado. Estar só não significa aqui sentimento de abandono, de desamparo. Pelo contrário, os sentimentos são ligados à liberdade, à confiança de poder correr os riscos da diferença. O outro não sendo mais objeto de projeções poderá ser visto como diferente, não inimigo. Alguém com quem ele pode trocar e se relacionar.
A capacidade de estar só representa a percepção profunda da própria identidade que vai então, organizar a vida, o pensamento, a conduta. Que vai trazer a possibilidade de inovar e criar.
Diante de um filme tão rico, eu poderia ter tomado vários caminhos para construir meu comentário. Acho que seria muito interessante abordar, como me parece que o diretor do filme o fez, o tema da Arte como fator de transformação do individuo. Ou ainda, ter tomado outros tantos caminhos. Contudo, acho que a psicanálise não pode abrir mão da história. O ideal de saúde é também político. Um Sistema Totalitário, impede a mais fundamental das experiências humanas: o trocar e o compartilhar que constrói a identidade de cada um, o processo que podemos chamar de humanização. Mais sobre o artigo, clique aqui.
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